quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cidades inteligentes e (des) humanas


CIDADES INTELIGENTES E (DES) HUMANAS

  Embora tenhamos a nítida sensação de que o mundo não vai bem, de vez em quando, até para anestesiar um pouco dessa angústia, geralmente através de jogo de palavras que formam uma combinação bem digerível, disseminam-se novos conceitos que antes mesmo de serem compreendidos, se tornam assimilados e desejados, haja vista o viés de modernização imposto para a afirmação de uma sociedade “incansavelmente inovadora”, fundamental à consolidação de um padrão global de consumo “sem raízes”, isto é, onde o conceito de novo está sempre defasado ante à sua própria efemeridade e descartabilidade. 

  Carregando consigo uma sucessiva série dessas “incansáveis transformações”, “para o bem da humanidade”, chegamos, atualmente, a esse portentoso chavão, que é o desejo de todo ser humano, porém, cuja efetividade, à mínima análise, desafia o senso crítico, como nos propomos a refletir, ainda que com a exata noção das dificuldades em confrontar o que, pomposamente, se convencionou denominar: “CIDADES INTELIGENTES E HUMANAS”!

  Conforme motivei, seria ridiculamente estúpido em divergir de uma “cidade inteligente e humana”, fazendo questão de ressaltar, por isso mesmo, que ouso discordar é dessa massificação de termos refinados para “vender belos rótulos de produtos sutilmente enganosos”, torcendo para que você se sinta encorajado a me conceder mais um pouco do seu precioso tempo, com a sequência desta leitura, nem que seja para tentar entender porque alguém se propõe a também dispensar importante parte do seu, para elaborar reflexões desta natureza.

  A modernidade não precisa de discursos, sendo fácil o embevecimento e a adesão massificadores, formando um casamento perfeito com a “evolução”, ainda que os filhos por si gerados estejam crescentemente a descoberto quanto ao mínimo necessário à formação de um ambiente saudável para se viver, contrariamente ao que costumam sugerir a conjugação de termos que usualmente entorpecem o senso comum.

  Pode-se partir da premissa de que tais expressões não têm a pretensão de indicar a realidade em que vivemos, mas a que se tem por objetivo, o que, de qualquer forma, não se coaduna com o modo como se dá a sua disseminação, produzindo uma gama de efeitos, objetivamente, desde o seu início – e aqui está o fundamental - com enorme discrepância entre a afirmação da “cidade inteligente” e da “cidade humana”.

  Eis, então, um grande perigo, pois, uma “cidade humana”, por si mesma, já estará lastreada em algum tipo de inteligência, mesmo a mais primitiva, por se basear em vínculos seguros à condução daquele “aglomerado humano” através dos tempos, enquanto a “cidade inteligente” (a rigor, mais “Intel” e “iGente”) não necessariamente guarda sintonia com uma “cidade humana” (talvez uma cidade #umana) ensejando, dessa forma, extrema cautela ao se avalizar uma coisa pela outra, sem um mínimo de necessárias garantias.

 É nesse contexto que nos encontramos ardorosamente “obcercados” (cercados, obcecados e observados) por todos os lados pelos artefatos que criamos para vivermos, nos rel@cionando, pseudamente, seguros e empoderados, a cliques velozes de distância uns dos outros e de nós mesmos.

  Mais do que a própria família ou um teto, o importante é que todos, do nascer ao morrer - se possível antes e após essas etapas também - estejam digitalmente incluídos, ainda que tenham como única perspectiva de moradia os seus “endereços eletrônicos” no relento do mais humilde dos becos[1], contudo, enquanto “cidadãos do mundo”, virtualmente conectados, por um fio (em breve também sem necessidade dele, pois todos disporão de tecnologia wirelles, como o wi fi) às mais excitantes realidades do mundo. 

  Estando todos interligados pela “inteligência”, não há possibilidade de ir contra, afirmando-se o que se pode considerar uma “sociedade chipada”, o que corresponde, em outras palavras, a uma “sociedade ch@pada”!

  Logo, embora a realidade seja absolutamente destoante, o mundo virtual é o que se afirma como o existente, superpondo-se ao verdadeiro através de poderosas lentes que alteram a qualidade da imagem, “photoshopada”, automaticamente, pelas câmeras impregnadas nas mentes “downloadadas”, em substituição a versões originais das memórias, uma vez submetidas a minuciosas análises laboratoriais, após “recall”, devido às inúmeras imperfeições detectadas como transmitidas e adquiridas no ato do rústico contato da placa-mãe com a placa-pai (a propósito, padrão que a evolução também vem cuidando em constantemente avaliar, inclusive no que tange à “qualidade” dos “produtos” decorrentes desse contato).

  Para a afirmação de uma “cidade inteligente”, evidentemente, faz-se necessária uma população “inteligente”, não é mesmo? Ora, com toda a evolução do parque tecnológico mundial, tornou-se extremamente conveniente e rentável produzir e disseminar a “inteligência artificial”, enquanto, naturalmente, a inteligência humana sofre interferência de vários fatores pessoais e extrapessoais, além de jamais se identificar com a ideia de que seja tal qual um “produto em série”.

  No pacote de “modernidade global” em que fundamentalmente estão inseridas as “cidades inteligentes”, embora a fácil (e frágil para quem se der a exercício de senso crítico) disseminação de que busca a “inclusão de todos”, na verdade, a ideia quanto aos que não conseguem (não os que opõem resistência, vistos apenas como um “perigo”) alcançar o “padrão de inteligência” que lhe permita “ser útil”, é de que são uma espécie de “refugo”[2], termo muito bem explorado em “Vides Desperdiçadas”, por Zygmunt Bauman, para quem, aliás, paradoxalmente, “a expansão global da forma de vida moderna liberou e pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres humanos destituídos de formas e meios de sobrevivência”. 

  Não obstante, como as “cidades inteligentes” carecem – cada vez mais, evidentemente – de produtos e serviços, ou seja, a base fundamental para a sua afirmação, o mercado cuida em proporcioná-los de forma tão avançadamente avassaladora que se torna quase impossível resistir à sua constante imposição inovativa.

  Ou seja, a margem de liberdade para o administrador público ousar fora do campo que lhe é imposto é quase nula. Aliás, por ele, diuturnamente, agirá o insaciável mercado, readequando, substituindo ou obsoletizando, rapidamente, quaisquer tipos de novidades que de um dia para outro deixarão de ser para dar lugar a outra, “mais aprimorada”.

  A propósito, como o campo é extremamente fértil e o mercado rentável, diria que as transformações na sociedade passam a ser muito mais determinadas pelo que possa surgir dos interesses de uma só grande empresa do que propriamente pela determinação do poder público, em qualquer dos seus âmbitos, daí, inclusive, a forma tresloucada como o mundo se lança à produção de “inovações disruptivas”, ou mesmo às “inclusões digitais”, escamoteando as chagas pelo vácuo deixado cada vez mais no tocante às “inclusões fundamentais” ao ser humano.

  Não à toa, mudando completamente o cenário de outras épocas, as empresas mais valiosas do mundo, passam a ser as que dominam o cada vez mais “inteligente” campo tecnológico, como Google, Apple, Microsoft e Ibm, as quatro entre as quatro primeiras, dentre várias outras, também em expressivas posições, logo abaixo. 

   Com o domínio de tamanha “inteligência”, obviamente, o alcance da massa globalizada se torna exercício capaz de fomentar, incrivelmente, em plena época de gigantesca crise econômica, imensas filas em busca da infinita sequência de gerações de um produto, cujo auge de popularidade não costuma durar sequer o espaço de uma gestação, a fim de dar lugar a outro “mais atualizado”, contribuindo, decisivamente, para incrementar a cada vez mais preocupante geração de lixo eletrônico, a par de manter o ciclo de  satisfação do insaciável desejo em inovações, base para a manutenção ou elevação do “status” alcançado.

 É nesse contexto que, da noite para o dia, é possível inusitar, globalmente, comportamentos humanos, como se viu, recentemente, com a “febre” provocada por uma absolutamente incomum “caçada a pokemon’s”, registrando, atualmente, os termômetros, que a situação recrudesceu, embora, evidentemente, o “vírus” tenha sido incumbado na sociedade, sendo bastante provável que uma forma mais avançada dele ou de outros estejam próximos de provocarem nova epidemia mundial. 
 
  Não obstante, naquilo que efetivamente importa, a “inteligência” não se propõe a globalizar ou aproximar, já que seu molde, lastreado, basicamente, nos mais rígidos princípios econômicos[3] dificilmente possibilita enxergar que, em algum momento, cada vez mais próximo, será absolutamente inócuo continuar a oferecer dois ao preço de um para quem não precisa de nenhum, mas sim alcançar a imensa e crescente massa daqueles que necessitam de dois, aceitam um, mas não tem para nenhum...

  Nessa seara, como não poderia ser diferente, chegamos a ponto da “inteligência” confrontar e sobrepujar, esmagadoramente, as ocupações humanas, de forma que a chamada “4ª Revolução Industrial” (“carinhosamente”, também alcunhada de “indústria 4.0”), tema mais recente do Fórum Econômico Mundial, ter projetado, como fruto das inovações tecnológicas, a criação de dois milhões de empregos nos próximos cinco anos, frente à diminuição de sete virgula um milhões, a resultar no impressionante déficit de cinco virgula um milhões, não obstante costumeiras divagações sobre o humanamente inaceitável, pois não há como maquiar a tirania dos números. 

  Enquanto isso, mesmo diante do claro e desigual “cenário de guerra” pela ocupação dos espaços, os líderes públicos são embevecidos, arrastados, coonestados a aceitarem e, mais que isso, promoverem em tal sentido, tanto que, atualmente, pouca diferença faz quem quer que seja o administrador, dificilmente escapando do “vazio” frente ao que a “superior inteligência” lhe subordina, restando-lhe o lugar comum em assimilar e incrementar o reino das engenhocas a diuturnamente “nos aprumar”, dos quais a infestação de câmeras de videomonitoramento, radares e parquímetros são alguns exemplos. 

  Não se nega que em meio a tudo isso, mediante a gama de produtos voltados para uma efetiva “cidade inteligente”, existem vários aspectos a contrabalançar a visão ora esposada. A questão, obviamente, diz respeito aos interesses que movem cada passo em direção a um mundo onde o aspecto econômico sobrepuja, demasiadamente, qualquer outro, daí decorrendo o fenomenal avanço no campo da “inteligência”, cuja expansão, infelizmente, se mostra muito mais pela necessidade de ampliar mercados do que propriamente à formação de uma cidade “mais humana”.

  Com efeito, a “cidade inteligente”, desprovida de sentimentos, é apenas a consolidação da invasão de produtos “inteligentes”, em todos os âmbitos da vida, convidando-nos, sutilmente, a nos depreciarmos frente à grande capacidade de nossas fabricações em atender-nos em necessidades, de forma bem mais “adequada” que os nossos “descartáveis” semelhantes. 

  Enfim, sob sugestivo rótulo de “soluções inteligentes”, as relações do dia a dia, gradativamente, vão sendo preenchidas por máquinas, diminuindo-se, quando não afastando, sistematicamente, o fator humano, que, inclusive, a título de facilitação de sua missão, vê confrontada suas próprias habilidades e capacidades, desambientando-se a pensar perante tecnologia de ponta que o acomoda a seguir o manual. 

  E como aventa-se, a propósito, que no futuro as máquinas serão quase tão #umanas quanto nós, parece que se a recíproca não for verdadeira, nos tornando tão p@recidos com elas, perderemos, definitivamente, a concorrência! 

  Em contextos como esse é muito sintomático, por exemplo, frases como a da nossa outrora Presidente (ou Presidenta, como gostava) quando, em visita aos Estados Unidos, na sede de uma portentosa empresa, no Vale do Silício, Estado da Califórnia, ao descer de um carro que dirige sozinho: “- acabei de descer do futuro”. Asseverando mais: “É um nível de desenvolvimento que eu não imaginei que houvesse”. [4]

  Ou, apenas para reiterar esse “lugar quase comum” dos agentes políticos, a exposição do Presidente dos Estados Unidos, ao assinar editorial defendendo a evolução dos carros que não precisam de motorista, mediante verdadeira “peróla”, no que tange a nós, seres humanos, tão “rudimentares” em quesitos como “erros” e “decisões”, mas que a “inteligência” auxiliará a “suprir”, desalojando-nos de nós mesmos: “- Atualmente, muitas pessoas morrem no trânsito - 35.200 apenas no último ano – com 94% sendo consequência de erro ou decisões humanas. Veículos automáticos têm o potencial de salvar milhares de vidas a cada ano”.[5].  A propósito, Presidente também erra!   E muito!  Logo,...

  Da forma como se “produz e se consome” inteligência, no mundo, atualmente, fica até difícil imaginar que antes da “era touch screen” a humanidade a tinha com o principal objetivo de “conhecer, compreender e aprender”, como ainda ensinam os velhos dicionários, até que sejam alterados no tocante à sua principal finalidade, qual seja: vender e aguçar avassaladoramente o comprar! 


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[1] como diz Antônio Maria Baggio: “a igualdade no supérfluo esconde a desigualdade no essencial 

[2] “Sempre há um número demasiado deles. “Eles” são os sujeitos dos quais devia haver menos – ou melhor ainda, nenhum. E nunca há um número suficiente de nós. “Nós” são as pessoas das quais devia haver mais” 

[3] (e que, cedo ou tarde, por mais sólida que seja, acabará lhe mostrando a “igonorância” de um mundo a tanto oscilar) 


[5] A Tribuna, Seção “Sobre Rodas”, Vitória-ES, 22.09.2016, p. 12,